tecia, tecia, tecia.
era toda mãos, olhos, lábios, num misto de vigor e desfalecimento. o movimento das agulhas,
o som delicado do toque dos fios de lã.
o que se revelava nesse movimento de furar o tecido para bordá-lo depois? O que se revelava no movimento de trançar os fios? Fios enganadores. tramavam como se costurassem o corpo quando na verdade faziam do corpo tecido aberto. Ainda assim era preciso ser
generosa com o
textu.
generosa.
apenas o trabalho incessante de bordar naquela superfície.
aquele dia amanhecia com dor. dor não era amargura, mas vontade desmedida. dor não era sofrimento, mas tormento insistente.
aflição apenas. dor não era a lembrança, mas a loucura de esquecimento. dor não era a distância, mas a ausência. dor não era o silêncio da voz, mas o suspiro interditado.
dor era o corpo acordar todos os dias e ter que adormecer apressadamente.
tecia, tecia, tecia.
às vezes tinha uma estranha sensação de vertigem. como se escorresse por entre o tecido poroso o líquido antes represado. sobrava nas mãos as partes materiais. pujança vertiginosa.
“tenho vontade de comer isso”.
ele tinha dito enquanto balançava no ar o papel branco. foi então que começou a devorá-lo ali mesmo, na frente daquela mulher. Ela olhava com estupor as palavras sendo desmanchadas,
a folha branca desfeita e o corpo dele ocupado agora com o tecido do texto.
olhava imóvel o erotismo da devoração, a avidez do gesto. corpo desperto e um só pensamento: algumas coisas foram feitas para ser devoradas.
ele conhecia a violência da sensação que se alastrava pelos lugares antes não ocupados.
tomava as palavras, desatava a trama do tecido, se fartava com o tudo e o nada daquele corpo. entregue à insensatez do encontro ela morria de uma vez só, numa só intensidade. é que o vivo nasce do deserto.
toma o texto. e era ela.
devora-o. e era ela.
prove o gosto. e era o dela.
o desatino daquele impulso. o disparate daquele gesto.
a arbitrariedade daquele desejo. o prazer da devoração
aquela carne. sexo insano. desejo maldito.
(tecia, tecia, tecia).